‘Lente de aumento’: PM não entregou vídeos de quase 500 abordagens solicitados pela Justiça do RJ, aponta levantamento
04/12/2024
Em um dos processos que ficou sem a imagem gravada pela câmera corporal do policial envolvido, um técnico em eletrônica acabou preso por mais de 4 meses por suspeita de tráfico de drogas. O homem foi inocentado. PM não entregou vídeos de quase 500 abordagens solicitados pela Justiça do RJ, aponta levantamento
O Estado do Rio de Janeiro investiu R$ 162 milhões para equipar a Polícia Militar com câmeras corporais. Desde 2022, todo PM é obrigado a usar o equipamento. Contudo, apesar de gravar o dia a dia da tropa, nem todas as imagens feitas são enviadas para a Justiça quando solicitadas.
No 3º capítulo da série “Lente de aumento”, a Globonews e o RJ2 mostram que pelo menos 473 processos com pedidos para envio das gravações não receberam as imagens feitas pelas câmeras corporais dos policiais do Rio de Janeiro. Em quase 200 casos, a PM admitiu que os arquivos foram apagados.
Para Joana Monteiro, professora de política pública na FGV, o material produzido pelas câmeras deveria ser de fácil acesso da população, principalmente para os órgãos de Justiça.
"A gente tem imposto sendo pago para gerar essas imagens. Então, ela deveria ser de consumo de todos os órgãos de Justiça e Segurança Pública que, por lei, têm acesso a eles", comentou a professora.
O coordenador do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio, André Castro, explicou que o estado conta com 13 mil câmeras gravando as imagens 24 horas por dia e que a Defensoria Pública requisita apenas uma pequena parte desse material.
"Seria importante que as instituições de modo geral, e isso envolve não só a Polícia Militar, mas também as instituições do sistema de Justiça, desenvolvessem mecanismos para que a análise desses vídeos pudesse ser otimizada e ampliar a sua quantidade de exames", comentou Castro.
Inocente preso por 4 meses
Na prática, a falta do envio do material gravado pelos policiais pode provocar decisões injustas. Esse pode ter sido o caso do técnico em eletrônica, que não vai ter sua identidade revelada. O trabalhador acabou preso por mais de 4 meses por suspeita de tráfico de drogas. Ele foi inocentado ao fim do processo.
Segundo o relato do técnico em eletrônica, policiais o abordaram momentos depois dele atender um morador do bairro Cotiara, em Barra Mansa. Ele foi acusado de integrar o tráfico de drogas local.
"A todo momento o policial me ameaçava de morte, me chamava de vagabundo. Eu odeio essa palavra. Vagabundo é aquele que não trabalha, é aquele que rouba, é aquele que prejudica a vida da pessoa. Para um cidadão, pra um trabalhador, ser chamado de vagabundo é muito ruim", comentou.
O policial envolvido na prisão do trabalhador contou sua versão ao promotor responsável pelo caso:
"Nós viemos através de mata. A outra equipe veio através da viatura por frente. No momento que a gente se aproximou da parte alta pôde ver o nacional saindo de uma área de mata. Momento esse aí ele tentou sair, mas ficou parado. Aí onde ele desceu com as mãos já pro alto", relatou o PM.
Selo lente de aumento
GloboNews
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Ainda de cordo com o trabalhador, ele prestou um serviço em uma casa há 500 metros do local onde foi preso.
"Eu já tinha saído, uns 500 metros da residência dele, quando fui abordado pelos policiais, que me perguntaram o que é eu tava fazendo ali. Falei: 'Então, eu to com minha mochila nas costas, to dizendo pra vocês que eu tava fazendo um orçamento de câmera'. E dali pra lá eu não consegui falar mais nada. Juntou um monte de policial em cima de mim: cadê a casa? cadê a casa? cadê a casa?", contou.
O trabalhador rapidamente identificou que os policiais utilizavam câmeras corporais, o que poderia ser um ponto a seu favor.
Durante buscas na comunidade, os PMs encontraram uma submetralhadora do exército, um revólver, munição e drogas. Tudo foi encontrado na casa visitada momentos antes pelo técnico em eletrônica.
Em depoimento, ele disse que não viu o armamento e que não conhecia o dono da residência.
As imagens gravadas pelos PMs naquela noite nunca apareceram. Depois de ser intimada pela Justiça, a Corregedoria da Corporação admitiu que os policiais não classificaram os arquivos como evidência e os vídeos foram apagados do sistema.
Pela lei, toda vez que a ação policial termina com prisões, apreensões ou mortes, o vídeo precisa ficar armazenado por um ano. Essa regra não foi respeitada nesse caso.
"O que passou pela minha cabeça foi talvez não ver mais meus filhos. Eu tinha um filho de três meses e uma filha de oito anos que ficou quatro meses, 20 dias e 17 horas sem ver o seu pai por um erro da Justiça.
"Existia a prova de que eu não fiz pelas câmeras, mas não foi apresentado. É um equipamento que existia, que poderia ter tirado qualquer sombra de dúvida sobre mim, mas esse equipamento não foi utilizado", disse o trabalhador.